terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Engolindo a própria cauda

O politicamente correto virou uma epifania danosa à nossa cultura. Este ano iniciou com a polêmica em torno dos livros didáticos das escolas estaduais. Parece que um deles continha um texto do Monteiro Lobato que tratava os negros de uma forma pouco apreciável para os padrões de hoje. Em suma, era racista. E o mundo veio abaixo.
Inadmissível que professores formados, com o poder de educar as nossas crianças, não saibam situar uma obra literária clássica, como é reconhecidamente a de Monteiro Lobato, dentro de um contexto sócio-cultural do Brasil lá da década de 40 do século 20. Um aviso aos queridos docentes, que certamente nunca leram as histórias do Sítio do Picapau Amarelo, caso contrário não se assombrariam tanto: a Tia Nastácia é sim chamada de negra velha toda hora pela Emília, e Tio Barnabé de Preto Velho, linguagem popular do Brasil para os afrodescendentes desde que existia a escravidão. Naquela época ninguém considerava isso uma ofensa, aliás nem hoje deveria ser porque a raça negra deve ter orgulho de assim ser denominada e os velhos são velhos sim, por que negar as rugas? O que distingue o aspecto preconceituoso no uso do vocabulário é o modo como nos dirigimos à alguém. Ou será que já perdemos também a capacidade de distinguir um xingamento ou uma ironia de uma simples nomenclatura ?
Ainda bem que aos poucos tudo isso parece estar virando chacota na boca do povo. Benza Deus, porque implantarmos uma caça às bruxas a essa altura do campeonato com tanto assunto importante neste mundo seria apartar de vez o Tico do Teco. Opa, ou quem sabe deveria ter dito o Filipito do Filipeto? Sabe lá se os esquilinhos da Walt Disney não viraram também leitura pornográfica para nossos filhos...Recebi recentemente um e-mail – desses que circulam livremente pela internet – que merecia um oscar pela indignação bem humorada com que coloca às claras o absurdo paranoico do tal politicamente correto, que convenhamos, está engolindo a própria cauda. Estava assinado por Roberto Rabat Chame. Compartilho com vocês os melhores trechos dessa obra-prima:

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto. Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo – o homem – e a rosa – a mulher – estimula a violência entre os casais. Na nova letra “o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada”.
Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha. Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro? É Villa Lobos, cacete!
Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar. Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca.
Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos, e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.
Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil. Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.(...)
Daqui a pouco só chamaremos o anão – o popular pintor de roda-pé ou leão de chácara de baile infantil – de deficiente vertical. O crioulo – vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) – só pode ser chamado de afrodescendente. O branquelo – o famoso branco azedo ou Omo total – é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia – aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno – é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo – outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão – é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.
Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais… Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.(...) Outra: A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a “melhor idade”. Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não. Seremos os inquilinos do condomínio "Jardim da Paz".

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